O OCEANO NO FIM DO CAMINHO


É uma sensação curiosa quando certos "gatilhos" trazem à tona memórias que já tínhamos enterrado na nossa mente há muito tempo. O início de O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman, trata desta sensação peculiar. O protagonista, já na casa dos 50 ou 60 anos, visitava o local que passou a sua infância, e ao sentar na frente de um lago na casa de um antigo vizinho, começa a recordar as memórias de seus primeiros anos de vida.

Mas na história de Gaiman, o que o protagonista (não identificado) tem não são memórias comuns. O lago, localizado nos fundos da fazenda que ficava no final da rua, era chamado de oceano por sua antiga vizinha, sua única amiga. Um oceano que os seres antigos atravessaram para chegar no nosso mundo. Um oceano que comporta todo o conhecimento do universo. Ou, talvez, seja o próprio universo.

"Eu imaginei um oceano correndo por debaixo do universo inteiro, como a água escura do mar que ondula sobre as tábuas de madeira de um velho píer: um oceano que se estende de um infinito ao outro e ainda é pequeno o suficiente para caber dentro de um balde (...)"

O livro inteiro é sobre as memórias do protagonista, que aconteceram quando ele tinha 7 anos de idade. Depois que um inquilino do garoto comete um suicídio motivado por questões financeiras, estranhos fenômenos começam a acontecer, sempre relacionados ao dinheiro.  Apesar de contar com a visão de uma criança, não é um livro infantil, pois lida com temas maduros.


Tão importante quanto o protagonista é a família Hempstock, dona da fazenda onde o lago é localizado. Após o suicídio do inquilino, o garoto se encontra com as três mulheres pela primeira vez. Os Hempstock simbolizam três fases da vida das mulheres e são compostos por Lettie Hempstock, a infância, Ginnie Hempstock, a maternidade e vida adulta, e a velha senhora Hempstock, representando a sabedoria e o fim da vida. As três personagens não são humanas (nem deste mundo), e funcionam como porta para desconhecido e o fantástico. Na hora que li lembrei de outros personagens do autor, no caso as Fúrias, de Sandman, que assumem diferentes formas de acordo com quem as vê.

Li uma vez que um conto pode ter 20 ou 100 páginas. O que o define como um conto é você conseguir sentar e ler de uma vez só. Apesar de eu ter demorado alguns dias para terminar o livro de 202 páginas, a sensação foi de estar lendo um conto. Principalmente pela escrita fluída, mas também pela história muito bem contida e planejada. É tão bem escrita que as vezes eu acreditava que era um relato mesmo, como se aquilo tivesse realmente acontecido. Gaiman sabe falar sobre seres fantásticos como se todos nós soubéssemos que eles existem. Apenas tínhamos esquecido disso.

"Não tenho saudade da infância, mas sinto falta da forma como eu encontrava prazer em coisas pequenas, mesmo quando coisas maiores desmoronavam. Eu não podia controlar o mundo no qual vivia, não podia fugir de coisas nem de pessoas nem de momentos que me faziam mal, mas tinha prazer nas coisas que me deixavam feliz."

 O Oceano no Fim do Caminho permite diversas interpretações. Pode ser um romance de fantasia sobre como nosso mundo não passa de um véu derramado em cima de um oceano que guarda todo o conhecimento do universo. Pode ser uma fábula sobre como é dolorosa a passagem da infância para o mundo adulto. Pode ser um conto de como um garotinho solitário criou seres fantásticos para lidar com a falta de amigos, os pais ausentes e a governanta má. E é, sem dúvida, um grande livro.

Recomendado para: quem tem certeza que entre as brincadeiras e a escola havia criaturas de outros universos participando de sua infância.

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